27 de fevereiro de 2009

AO VIVO


Alguns sentados nos muros, outros em grupos de pé, muitos ansiosos. O alarde corre por entre corpos, motim mal organizado, fumo de cigarros e fumos com fragrância das Índias, esvaziam-se no ar da noite. Mãos coladas em garrafas de cerveja e boa disposição. Conversas insuficientes, não que sejamos todos tolos, mas a cabeça já se matriculou num curso que durará duas horas, onde somos alunos, professores e matéria. Alguém grita mais alto o nome de alguém, olhamos e sorrimos mesmo antes de olhar porque sabemos que é um dos "nossos", não falha! Camisola preta com o nome gravado em letras brancas, mais um faz sempre falta! Em bicos de pés reparo no que me rodeia, satisfaz-me os milhares, idades muitas, família que se veste parecido, com um fim claro: dar tudo e receber tudo. Abriram as portas...
Um dia gostava de filmar as caras, espera-los lá dentro para ver o que vejo em mim e o que consigo ver nos que me estão mais próximos: a emoção contida a transbordar, o orgulho de ser fragmento, a alegria da primeira vez, o ar apressado para encostar nas barreiras e a certeza que vamos fazer parte. A entrada é um momento que gosto particularmente, o frenesim estrondoso de uma massa humana, o deslumbramento com a sala, mesmo que seja a trigésima vez que lá entramos, os sons da acomodação anárquica e os olhares perplexos a constatar o momento. Corta-se o cordão que nos liga ao mundo e passamos a ser um "gigante". Apagam-se as luzes...
Momento de silêncio que dura um milésimo de segundo, depois, os gritos guardados, os assobios, as mãos no ar e as vozes nossas que ecoam até ao tecto e voltam. A delonga está no fim e até esse instante é delícia. Acendem-se todos os focos e os primeiros acordes rebentam...
Agora somos sons, somos movimento desordenado que olhado de cima é perfeitamente simbiótico, somos ouvidos sem filtro, somos poros abertos a transpirar e a sugar, somos boca e garganta de mil notas, somos corpo em erupção, somos o palco do palco. Mais uma vez olho em meu redor, faço-o sempre num refrão poderoso e conhecido ou num momento de uníssono, vejo fulgor e a vontade burlesca de todos em participar de uma forma marcante, vejo calor e as faces brilhantes de exaltação, vejo comunicação e energia lançada para o palco e rebatida para o povo. Sinto-me feliz e no correr do tempo, salto, grito, canto, aplaudo e vivo muito... A última nota, a despedida calorosa e arrepiante que faz crer que podia começar tudo de novo! Acendem-se as luzes do fim...
Corpos suados e lentos, cambaleiam para a saída. Vozes fracas e roucas, poucas, porque a memória ainda junta tudo e a vontade é de lembrar. Olhos vidrados de encantamento. Zumbido que atenua o rigor de voltar à generalidade. Desaparecemos vultos pelas ruas...

22 de fevereiro de 2009

Sem fim...


És tu. Sim tu. Que abres os olhos e lês estas letras atadas com laços de ferro. Tu que me forças a mente e me atolas as mãos. Tu que fazes de mim escravo da delícia do texto. Tu que tens meus braços como marionetas e jogas com eles, cansas-me deles até que doem, da dor passam a adormecidos, do dormente passam a prazer e continuam.
É para ti que me vergo e componho, é para ti que os meus olhos não piscam e mergulham num mar sem fundo, e quanto mais desço mais luz tenho mais morno fico, passo a tinta ao papel num degusto lento que sabe a muito em pouco tempo.
É por ti que me perco no labirinto, quero-me perdido com a saída à vista, deambulo por entre pensamentos e questões e vou sumido de novo. É por ti que conheço prazeres infindáveis, lugares de volúpia constante, frenesim de versos e música. É por ti que canto com os dedos e danço com a mente.
Será para ti tudo que falta na folha branca, será para ti os gestos futuros dos meus pulsos, será para ti o desabafo, abraço e a culpa,será para ti a vírgula desnecessária, será para ti a próxima linha, o seguinte capítulo, a história, sem fim, sem ponto final
Obrigado

20 de fevereiro de 2009

Destino Improvável


Ele vendia balões perto de um jardim com lago. Ela estudava em Belas Artes mas já pintava.Ele vivia pacato, dois amigos e dois telefonemas da mãe, por semana. Ela vivia cheia, cem amigos e três irmãos.Ele ganhava o certo para pagar renda, comida e cinema. Ela ganhava por exposição, incerto.Ele vendia balões das cores do mundo. Ela pingava no quadro paisagens perfeitas.Ele serve-se do carvalho para não derreter. Ela serve-se do sol para não derramar.Ele guardava os balões às cinco e deitava-se na relva. Ela pintava para lá das cinco e dormia na tela.Ele assobiava o som dos pássaros, de mãos atrás da nuca. Ela sentava num tronco de perna cruzada.Ele de camisa azul e calça branca. Ela de vestido lilás e lenço laranja.Ele viu-a e corou. Ela viu-o, não respirou.Ele de mãos nos bolsos aproximou. Ela parada rejubilou.Ele chegou, pousou como na formatura. Ela desceu, tapou o sol.Ele sorriu e deixou o tempo passar. Ela segredou o fim do pingar.Ele correu, juntou todos os fios, todos os balões e correu. Ela esperou perto da tela, retocou com vermelho.Ele, balões na mão direita. Ela, pincel na mão esquerda.Ele e Ela, abraçaram-se e num pulo só... Entraram na tela e voaram, voaram, voaram, presos por fios e feitos de tinta. Para sempre.

11 de fevereiro de 2009

Delírio

Beija-me a boca
Apetece-me o sabor do teu cuspo
Aquece a língua no meu hálito
Sê, só boca
Escorre-a nos meus lábios
Suga-me liquido, quente
gruda, sem ar
os lábios nos cantos e
os cantos nos lábios
Dança, como fole carnudo
Sem ritmo, escassos momentos
repente de quase união
Nem toque, nem carne
Nem húmido
Só ferve ar por entre arfar
Curto lance, enlace
Junta tudo mais meloso,
gasoso, guloso
Fica, perde a água toda





"BESTAS"

A condição que os faz pequenos é a mesma que os tolhe e deixa agonia à sua passagem.


Estou farto do coitado, estou atulhado da pessoa infeliz de braços cruzados.


Enjoa-me os tormentosos do nada, os que pelos olhos aguados se munem de gente em redor do seu vazio.


Não posso mais com os sorrisos pálidos dos punidos que carregam uma cruz de esferovite pintada da cor do sangue, que nem corre nem verte.


Enfastia-me a fama bacoca e solta de notas esvoaçantes à espera de um molhe de gente de mãos no ar.


Repugna-me quem ilumina o caminho com luz alheia e se sente mais do que a própria pobreza.


Viola-me o triste mendigo da mão do próximo que não tem mão nele, não tem mais do que lágrimas secas que são cordas para prender almas.


Entristece-me o monge falso de véu que estende passadeiras vermelhas para invocar cortesias mascaradas na sua solidão.


Reprovo o pérfido anão em terra de gigantes, porque está de joelhos, socorre-se de braço humano quando tem energia para se erguer sozinho.


Não compreendo o poderoso de bolsos atestados que desfila com o cobre à vista, esperando ser seguido pelo cintilar da ambição.


Escarro o menino pintado com lágrima a deslizar pela face que tenta o lenço perfumado a que não tem direito pelo sofrimento inócuo.


Execro o hipócrita de cabeça baixa que entusiasma o outro com cartazes de clemência.


Abomino aquele que pensa que a ausência faz tremer os presentes. A ausência dos inúteis nunca foi notada.



Grito. Grito alto, de tamanho e paragem.

5 de fevereiro de 2009

CONSCIÊNCIA?


Nasci eu, no mesmo dia, alguém escolhe o Anjo que me acompanhará pela vida fora. Nascemos, e a todos é destinado um Anjo. Tenho a certeza que haverá um Anjo para cada um de nós, e que o mesmo Anjo acompanha várias vidas depois da nossa.

O meu Anjo tem um ar velho, como se tivesse cem anos, revela-se vezes sem conta, e apresenta-se em forma de vapor, imaginem o fio de fumo que sai da panela ao lume nas vossas cozinhas, ganha contornos de homem e segue-me do meu lado direito, rasante a mim e ao chão.

Não é pesaroso nem molestador, tem dias e noites que o esqueço, nem dou por ele. Mas está lá. O meu Anjo gosta de mim e tem um natural e profundo conhecimento das coisas. Sempre que preciso, olho, e às vezes, muitas, só com o olhar me diz o que quero saber. Outras, falamos, mas é de poucas falas, é velho e custa-lhe proferir muitas palavras, esta é a minha visão, mas sei que a prosa que usa é precisa e imprescindível. Eu inquiro tudo, mas daquela boca fumada só sai o útil, o fatal.

Nestes últimos anos, primeiros de profundidade, uso-o amiúde, questiono, pergunto com o olhar e ouço, retenho e aprendo. Todavia, nem sempre foi assim, muitos anos o ignorei, achei que era como a inocência, um dia perdemo-la! Ele, sem desvios no caminho, acompanhou-me do céu ornado de estrelas até à sentina mais repugnante, sem interferir, sem queixume ou ressentimento.

Aprendi, vi a sua importância, senti o seu poder na minha vida, e na vida de quem me rodeia. Está para servir e eu para me servir dele, não age preventivamente, não me chama, não me culpa, não me acolhe, não me castiga e nem moraliza. Mas está lá, quando duvido, quando hesito, quando receio, quando acredito, quando caminho. Só tenho de o trazer antes da decisão, e aí, é equilíbrio.

Sempre que o esqueço, não o convoco ou prescindo, cometo erros ou tenho sorte.

2 de fevereiro de 2009

Pôr-do-Sol



Chegamos lado a lado, demos as mãos e seguimos, a par marcamos a primeira pegada, uma minha e outra dela, continuamos... Areia húmida, pensei: os Deuses juntaram-se e com um leve sopro pentearam toda a praia, todas as praias, porque não sabiam qual é a nossa!
Nós e o silêncio humano. As ondas breves, cadentes e quase mudas, com um sussurrar que era carícia, mimo, beijo na face. Como lençol curto, deixavam a descoberto pontinhos de pedra em forma de beijos largados por sereias como boas-vindas.
Frio, o dia mais frio, mas seco não chorado, (se fosse a pedido não tinha sido tão exigente) e o olhar confirmava! Nem viva alma, nem cascos a fazer aquele corte artificial na água que se prolonga mais do que queremos ver, nada, só uma tranquilidade que nos mitigava a mente, só nós e as marcas que tatuamos com os pés naquela pele lisa, bege. Sem dor.
Dava ares de trono! Rocha esculpida, perdida entre as demais. Encontrada, por ela, como se soubesse que ali nascera, sem empeçar, sentou... Coisa certa! Era ali o seu lugar! Olhar no mundo, serena, pronta para a primeira vez, tive a sensação que tudo estava no seu lugar. Ela, o Mar e o Sol, e o meu olhar a olhar para o olhar dela a olhar tudo isto.
Faltava um palmo, era o que separava o Astro do seu banho. Pujante, laranja de vigor, fervilhava de feliz, aproximava-se o descanso, o sono merecido. Chegava a casa.
Pairamos, tudo parou e quase o mar calou... O céu limpou de aves e nuvens, o vento sossegou e pôde respirar fundo para novas viagens, eu estarrecido com medo de falhar e até a linha do horizonte se pôs mais horizontal! Iniciou...
O regaço de uma Mãe a acolher um filho, devagar, e ele a presentear com calor e a temperar os seus braços de água, derretiam-se de ternura, e assim foi, lento, pausado, belo... E eu lento, pausado, mergulhado no olhar dela, e nós lentos, pausados, deslumbrados com a encenação... Aconchegou-se todo, entregou-se sem reservas.
Como despedida, presenteou-nos com fios ténues de vermelho alaranjado, que acenavam melancólicos e imortais. Persistimos para lá da intenção, degustamos lentamente, viramos costas... Já uma bela senhora se engalanava para uma noite cheia!
Demos as mãos e seguimos.

O ÚLTIMO DIA ( parte II )


Entrou, sem bater, tirou as roupas pesadas e húmidas. Estava em casa, janela aberta, cortinas esvoaçantes, vento leve, ameno, com cheiro a campos de milho, sol. Debruçou-se no parapeito, alto.
No horizonte o mar, calmo como rio, do mesmo azul que o céu, pareciam um só. Os sons calmos, da brisa, do pipilar das aves e por vezes dos sapatos dos miúdos em correrias.
Aspirou o ar de rua, ao expirar suspirou! Pensou, sorriu. O tempo quase parado, a brisa entrava, rodopiava, oferecia-se à pele, que a recebia com todos os poros. Abriu os braços como se quisesse abraçar tudo o que via, olhou amplo e viveu.
Os sinos da igreja soavam nove badaladas e do silêncio, como que a celebrar, a carrinha do peixe chega e com ela o megafone pelo qual se faz anunciar. O movimento começou a aumentar aos poucos, com melodia e tradição, estava tudo perfeito, por dentro e lá fora.
Procurou um disco, pegou-lhe, e quase em acto de sedução, retirou o vinil, soprou. Levantou a tampa do gira-discos... Baixou a agulha... "...Don`t worry about a thing, `Cause every little thing gonna be all right...". Sentou-se, fechou os olhos e ouviu. Cantou.
Ontem foi o último dia de "Inverno".

O ÚLTIMO DIA ( parte I )



O dia arrasta-se lento. Já começou tarde, e mesmo tarde, parece comprido demais para quem não sente as pernas. O peso segue no mesmo rumo, empurra-se demorado, desce e fere tudo por onde passa. Que leve corpo escravo do pensamento devoluto, que do estéril reproduz e se transforma em monstro desmedido.
Brisa sem quente sem frio, que não passa, estala nas mãos, murcha os lábios, sempre de frente, venta sempre de frente. Corpo frio em esforço, pesado de nada, pesado de tudo que que as palmas não sentem. No fundo os pés, um à frente do outro, e por baixo cinzento molhado, veloz e desfigurado, chão. Venta sempre de frente, olhos abertos, cabeça baixa e cinzento molhado, chão.
Carência de caminho, sem casas, sem passeios, sem peões, sem luz, sem paragens, só linha contínua, contra o vento, contra o tempo que não corre nem pára. A sombra que atormenta, nasce sem sol e cresce, cresce, cresce e pesa.

Segue na frente, escurece o cinzento, aumenta o sacrifício, mas comanda em pontas de veneno. Procurou, procurou no vazio, procurou na amplitude negativa, no breu, e achou! Portada negra de ferro sujo. Bateu com estrondo, começou a extinguir-se e desapareceu, a sombra. O corpo, cativo, dominado e arrastado, nem som nem toque.